Histórias de Trabalho, 2000

Histórias de Trabalho, 2000

Detesto quando ela faz isso

  As mãos na cintura, o queixo imperativo, ordenando que eu tire as crianças da sala, que o menino melecou o sofá com as mãozinhas sujas de chocolate, Culpa tua, ela diz, a voz analisada. Reparo na louça por lavar, as roupas a serem passadas, adianto serviço, mas nunca consigo terminar, é o menino que se machuca, a menina que embarra os pés.

Ela me repreende por tudo, o marido já mandou que moderasse comigo, mas Nadia é teimosa, dá jeito de fazer intriga entre eu e Gustavo, arranja desculpas, me ignora. Ontem a noite não consegui dormir, arrumei umas roupas e coloquei na mala. Fiquei pensando na vida sem ter coragem pra decidir.

Ainda tenho que colocar as crianças na cama. Nadia vai jantar fora com o galante, como chama Nestor o fuinha do marido que arranjou, um tapado!

Já expliquei pro meu Gustavo que Nadia não é motivo pra nos afastar ele não ouve, um atordoado isso sim! Vai acabar enlouquecendo o infeliz, trabalhando como um doido naquela oficina. Ele diz que não quer nada comigo, mas vejo em seus olhos que é mentira e, depois sou eu quem lava suas camisas engraxadas. Alimento esperanças, pensando no dia em que ele vai me tirar daqui.

A Nelinha fez xixi na cama, dou-lhe umas palmadas que é pra aprender, depois invento de ler histórias, se fossem meus filhos não ficaria tanto tempo longe deles.

Estou exausta, a visão me encalça vultos, hoje o dia foi pesado. Gustavo veio buscar umas camisas, nem notou que eu me perfumei só pra ele. Fico entregue, a cabeça acomodada ao travesseiro o sono veloz.

Acordo no meio da noite a puxões, esfrego o rosto, Nadia trás o dedo apontado pra mim, reclama que tem pó na estante, imploro pra que deixe pra amanhã, que dou jeito assim que pôr o pé fora da cama, ela fica plantada ali , pés separados, mãos na cintura, o queixo imperativo, detesto quanto ela faz isso!

É só o pó, pergunto, ela se desculpa por ter feito sujeira na cozinha, era só a sobremesa que inventou, o Nestor vinha pedindo há dias, Uma imundície, concluí.

Acho que Nadia não suporta me ver parada, uma sanguessuga estúpida. Esfrego o chão, tem baunilha até na porta da geladeira. Me pega um salário mísero, sou babá quando na verdade devia ser tia! Minha irmã acompanha meus movimentos com olhos vigilantes. Se Gustavo me pedir um dia em casamento, eu caso. Relembro da mala, meus joelhos ardem com a pressão do corpo contra o chão, se puder organizá-la. Nadia me chama, se mete até nos meus pensamentos, tem sempre uma piadinha na ponta da língua, Vem aqui cascuda! Eu sou tua irmã, digo quando fico enraivecida, ela abana a cabeça, os braços na cintura, me fulminando com os verdes de seus olhos.

 Tu és uma bastarda, vira as costas e me rejeita pela minha cor. Dona Quitéria contou que eu era filha do coração, repito para Nadia em memória de mamãe, ela fecha a cara e diz que preto não tem coração nem vez. Manda que eu mude a roupa de cama, que Nelinha tomou muito suco. Enquanto preparo o banho penso em Gustavo, se ele pedir eu caso.